
A coroa de maior drag queen do Brasil está em Coelho Neto, na Zona Norte do Rio. A majestade do glamour, da “montação” e da “bateção” de cabelo é Organzza, persona de Vinicius Andrade, de 31 anos, que venceu o reality show Drag Race Brasil, programa baseado no longevo RuPaul’s Drag Race, que existe há 14 anos e é a maior competição de talentos queer do mundo.
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Vinicius, que atende tanto pelo pronome masculino quanto pelo feminino, venceu a primeira versão brasileira da atração em novembro e faturou R$ 150 mil, valor mil vezes maior do que o cachê que ganhava por noite. A glória veio como um sinal para o ator e figurinista se manter no caminho da arte drag, que exerce há cinco anos e estava prestes a abandonar.
— Antes de o programa começar, eu estava quase desistindo. É insustentável fazer isso de maneira independente — confessa o jovem que, na última semana, teve uma agenda cheia e fez shows em quatro capitais do país. — Até o início do ano, eu nunca tinha viajado de avião.
Um dos motivos pelos quais é difícil um artista se manter na arte drag é a quantidade excessiva de gastos. Uma peruca custa entre R$ 250 e R$ 300, mesmo valor do investimento médio em maquiagem num mês; um figurino, a depender de tecidos e acessórios, supera os R$ 400. Sem contar que ir e voltar das boates nos bairros da Zona Sul pesa no bolso dos artistas, que normalmente não moram ali.
— Eu estava conseguindo uns três trabalhos no mês, mas com um cachê que não dá para viver. Fazemos muito investimento (na produção). Às vezes, com maquiagem, roupa, sapato e peruca, os gastos somam o dobro do que ganhamos. No fim do mês, a conta não fecha. Tudo o que tive que produzir para fazer um evento vai embora. Ainda tem o valor do carro de aplicativo porque não tem como ir “montada” no transporte público — diz Vinicius, que desembolsa R$ 140 por dia para ir e voltar do trabalho.
Tanto esforço e sacrifício foram recompensados com a vitória no programa. Antes de a atração chegar ao fim, bares e restaurantes lotaram de clientes com as “watch parties” (festas para assistir a programas), o que dá a dimensão de como o mundo queer conquistou admiradores. O Quiosque Sunset, na Ilha do Governador, os bares Reduto e Pavilhão, em Botafogo, e a boate Pink Flamingo, em Copacabana, foram alguns dos que abriram as portas para os fãs assistirem à atração na TV.
— Quando saiu a notícia de que o Brasil teria a primeira franquia, logo corremos atrás para transmitir. O sucesso com o Drag Race foi tanto que a gente teve que colocar dois telões para atender a todo o público — conta Byron Teixeira, de 30 anos, dono do quiosque da Ilha que recebia mais de 200 pessoas em plena quarta-feira, dia de exibição do programa.
Vestido de Organzza, Vinicius levou para a televisão o orgulho de pertencer ao subúrbio. Na infância, o menino fã de Jorge Lafond, a Vera Verão, era figurinha fácil na Vila Olímpica de Coelho Neto, na Zona Norte. Ali praticava exercícios e participava de apresentações de teatro. As memórias afetivas motivaram o ator a mostrar na televisão, e em seus figurinos, referências de sua região. Apareceu, por exemplo, com uma roupa inspirada nos bate-bolas do carnaval e, num episódio chamado “Minhas raízes”, usou uma capa estampada com um desenho que lembra o Morro da Pedreira, perto de onde cresceu.
Só que a vida no subúrbio não foi feita apenas de afeto. Em 2018, Vinicius se montou de drag queen pela primeira vez para participar de um evento chamado “Queens, o Concurso”, que elegia a melhor artista na extinta boate TV Bar, em Copacabana. Ao sair de casa no salto, sentia olhares de julgamento na rua.
— Houve uns períodos complicados. Por sair à noite, as pessoas acreditavam que eu estava indo fazer coisas que não um trabalho artístico — lembra.
Aparecer semanalmente na televisão interpretando, dublando e cantando, diz ele, ajudou os conhecidos a entender melhor seu trabalho.
— Com um tempo, pessoas que eram mais próximas foram mudando o pensamento, viam que aquilo era um trabalho. Mas o subúrbio, de forma geral, ainda é um lugar cis, héteronormativo e LGBTfóbico. E lá muitas pessoas não têm acesso a discussões (sobre o assunto) — lamenta.
Enquanto estava no ar no reality show, Vinicius teve contato com outro tipo de preconceito: o racial. Nas suas redes sociais, os fandoms (rede de fãs) de outras participantes deixavam mensagens racistas. Enfrentar a discriminação, ele aprendeu desde cedo, já que os pais, a corretora de imóveis Carmen Silvia e o gerente de uma empresa de segurança Ricardo Andrade, sempre puseram em prática o letramento racial:
— Eu sempre soube que era uma pessoa preta. E tudo o que acontecia em relação a isso, eu não deixava passar.
No Instagram, rede em que tem 80 mil seguidores, Vinicius informou recentemente que vive com HIV. A ideia de falar abertamente sobre isso começou a aparecer quando outra participante do reality, a drag queen Helena Malditta, tocou no assunto na TV.
— Comecei a questionar por que eu não falava. Isso ficava martelando na cabeça. Não há tabu. O que a gente vê é muita desinformação. Eu tomo dois comprimidos por dia e vivo bem, sou indetectável (não transmite mais o vírus por via sexual). Faço o tratamento no SUS — explica. — Vou viver com o HIV assim como pessoas da minha família vão viver com diabetes. Não é uma sentença de morte. Cheguei à conclusão de que o medo, na verdade, era do outro, do que a pessoa desinformada ia pensar.
Vinicius quer continuar sonhando: colocar seu espetáculo na rua, fomentar a criação de mais espaços culturais na Zona Norte, aposentar a mãe, dar uma moto ao irmão e investir em sua arte queer:
— Ano que vem quero fazer a turnê “Altamente inflamável”. Sinto que nesse momento tem um fogo muito forte dentro de mim. Tem uma música da Elza Soares que mexe muito comigo em que ela diz: “Me deixem cantar até o fim”. E é isso: quero fazer arte até o fim.
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